Tuesday, October 28, 2008

EXÍLIO DE LEAL DA CÂMARA EM MADRID

HUMOR Y TURISMO FORÇADO
OU O EXÍLIO DE LEAL DA CÂMARA EM MADRID


Conferencia realizada a 25 de Outubro 2008 na Universidade de Granada, integrada no II Encuentro Internacional de Humoristas de Granada
Por: Osvaldo Macedo de Sousa

O turismo está na essência do Homem, mais não seja ir à esquina comprar tabaco ou tomar um copo com os amigos, tudo só para não se sedentarizar em casa.
Também se pode garantir cientificamente que o turismo está na génesis do Homem, visto a sua irreverência, a gula pelo conhecimento da maça, o ter colocado em turismo forçado para fora do Paraíso. Dizem os teóricos que a arvore da Sabedoria mais não era que o humor, e que a gargalhada que se verificou após a primeira dentada provocou o big-bang, e o mundo ficou tal como é hoje, uma grotesca bola de vida em crise financeira, crise familiar, crise politica ou crise religiosa, consoante o interesse e afinidades de cada um.
Vagueando pelo planeta, o Homem Sapiens foi visitando os melhores campos de caça, os mais belos recantos de abrigo… Sempre que a adversidade invadia o seu espaço, partia em turismo forçado para novos territórios.
A sedentarização, na realidade, não passou de um acto comercial no campo do turismo, já que com este acto político administrativo, criaram-se novas oportunidades de capitalização dos espaços, assim como novos empregos na hotelaria e agências de viagens. O poder assumiu o conceito de viagem como controle fronteiriço de produtos e matérias-primas, para além da vigilância das mentes pensantes ou, simplesmente, turísticas. Criaram-se, deste modo, estruturas de apoio e controle do turismo cultural, comercial e religioso.
Contrariamente, ao que muita gente pensa, o turismo não é uma moda contemporânea. Sempre existiu e os Romanos já comercializavam Guias de Viagem, guias turísticos sobre os pontos, os elementos importantes das principais rotas comerciais, religiosas ou de simples lazer.
Quanto aos turistas forçados, sempre existiram, já que o poder é algo que não combina muito bem com o espírito de irreverência, com o pensamento livre e curioso. Na história, estes turistas tiveram várias designações, como exilados, escravos…
Esta minha vinda a Granada é um acto de turismo não forçado, mas de grande prazer, porque para além de ser uma das terras mais belas da Ibéria, é uma região que recorda espaços de turismo, exílios, tolerância intercultural, irreverência, humor…
E cá estou eu, cá estamos nós neste Outono solarengo, período de castanha e vinho novo a comemorar a Semana Santa. Só mesmo os humoristas, é que poderiam ter criado tal confusão de tempos litúrgicos.
Não me pediram para falar sobre a “via crucis” dos humoristas, ou sobre as alegorias e paródias que o cartoonismo tem usado, ao longo da sua vida, para caricaturar a vida política. Não vou falar das flagelações, paixões, carpideiras, Herodes e Pilatos…
Por outro lado, só um humorista poderia ter escolhido a título da minha conferência. O que me foi pedido, no convite, foi uma palestra sobre algo que unisse, no estudo do humor, estes dois países irmãos na iberocidade. Em Portugal, publicaram-se trabalhos de alguns artistas espanhóis, mas nenhum viveu lá. Em Espanha, creio que nunca houve portugueses a colaborarem regularmente na imprensa noticiosa, ou a cá viver, excepto Leal da Câmara.
Este artista viveu Madrid durante dois anos. Amadureceu aqui como Homem e como Artista, seguindo depois para novos voos. Alguns contemporâneos dele garantem que foi uma presença importante e revolucionária que deixou marcas, influencias. Os investigadores actuais nem sequer referem o seu nome, a sua obra publicada por estas terras.
Resolvi pois vir cá falar sobre este artista, escolhendo como título “O Exílio de Leal da Câmara em Madrid”. Quando recebi o programa descobri que vinha conversar sobre o “Humor e Turismos Forçados”.
É verdade que o exílio é um turismo forçado e quando Leal da Câmara chegou a Madrid vinha em fuga forçada. Também é verdade que em Madrid ele não sobreviveu economicamente, apenas. Pelo contrário, procurou sorver a cultura, a riqueza pictórica dos seus museus, viver os ambientes tertulianos de discussão cultural, a boémia das irreverências, conhecer a sociedade espanhola, conhecer os seus tesouros, seus costumes, suas mulheres… Foi um verdadeiro turista a calcorrear as tertúlias, os teatros, os museus, as verbenas…
Quem é Leal da Câmara ? Tomás Júlio Leal da Câmara nasceu em Pangin - Nova Goa (Índia Portuguesa) a 30 de Novembro de 1876. Viveria até aos 6 anos na Índia, altura em que a família se muda para a metrópole, Lisboa. Pela actividade militar de seu pai, a sua vida sempre esteve moldada pelas saias da mãe, e esse poder ficou mais explícito a partir da morte do pai em serviço em Timor. Esta morte ao serviço de um regime que não lutava pelo seu império entre os grandes, que se acabrunhava perante a ignóbil Albion marcou profundamente a revolta do jovem Tomás Júlio.
Estávamos no início da década de noventa de oitocentos, em que os ânimos nacionalistas andavam exaltados contra a passividade, a subserviência dos governos perante os poderes externos. Em que a revolta germinava contra o imobilismo da nação, contra a usurpação dos dinheiros pela monarquia… A República surgia então como uma utopia alcançável, um projecto salvador para relançar o país no progresso, na soberania do seu império…
Dentro do núcleo das irreverências, das armas da oposição, a caricatura capitaneava na crítica jornalística, tendo como almirante da armada dos lápis litográficos, Raphael Bordallo Pinheiro, rodeado de muitos soldados, quase todos eles armados com o raphaelismo, como estilo dominante. A carreira de Raphael já tinha mais de duas décadas de lutas inglórias na imprensa, e o seu revolucionarismo naturalista dos anos 70, já se ia esmorecendo no cansaço, na divisão de seus interesses plásticos e de sobrevivência, transformando-se, cada vez mais, num academismo estético, e a sua sátira numa ironia cansada de criticar sempre os mesmos erros, as mesmas politicas, indiferentemente de que cara estivesse ao leme do governo.
Leal da Câmara é um estudante com o sangue na guelra, submetido a um poder materno que lhe pesa, por um lado, como uma opressão, por outro como um remorso de eterno agradecimento pelos sacrifícios feitos para lhe dar uma boa educação. Se o bom comportamento se mantém dentro do controle possível, para não sacrificar a mãe, o nervosismo da mão extravasa a revolta para a irreverência, e o seu traço rápido e nervoso está sempre engatilhado para disparar sobre quem merece, para rabiscar um papel, uma parede, uma pedra litográfica…
Em 1896 Celso Hermínio lança o seu “Berro” de revolta, um periódico que apesar de só ter publicado 18 nºs, será um marco de uma nova época satírica. A ironia raphaelista já não satisfazia os gostos dos jovens críticos ao regime, que desejavam avançar para a provocação directa, para a agressividade ideológica que incomodasse os passivos do regime e das oposições. Renasce então o espírito grotesco e panfletário que esteve na origem da sátira politica portuguesa, em tempos do cabralismo. Leal da Câmara inserir-se-á neste espírito como seu lema: “Comentar, causticando”.
Assim nesse ano de 1896, não aconteceu só o “Berro”. Leal da Câmara impor-se-á como uma promessa, como um novo valor satírico. Não nos referimos ao efémero “Inferno” de que ele foi director artístico, mas sim à sua colaboração em o “D. Quixote”, ao lado de Celso Hermínio e João Chagas. Este ultimo, jornalista e republicano activista, foi quem melhor explorou a irreverência destes dois artistas, para o combate que ele queria liderar.
Em 1897 colaborará em “Os Ridículos” e entra na nova aventura no Supl. Humorístico de “A Marselheza”, um projecto de João Chagas. Este último tinha no cabeçalho a gloriosa inscrição: o jornal “de maior circulação em todo o Governo Civil” (onde estava instalada a censura)
João Chagas, que é o verdadeiro mentor de “A Marselheza” escreverá: «Quem é pela monarquia está disposto a morrer com ela: quem é pela República, está disposto a morrer por ela. Cessou toda a propaganda. Entrou-se definitivamente numa fase de combate. Já não é de amigos, secretários ou aderentes que se precisa; é de soldados. Já não se reclamam palavras: reclamam-se armas…» E o lápis será uma grande arma. O batalhão de soldados, para além do jornalista e do desenhador, é composto pelos gráficos e pelos ardinas, todos eles vitimas da perseguição policial.
As apreensões serão constantes, por isso por vezes é necessário imprimir em vários locais, ser distribuído pelos ardinas mais rápidos para que o público consiga ler alguns exemplares. A policia, conhecida como formiga branca, ou fuinhas é pois um elemento vivo da vida do jornal, razão pela qual invade as suas páginas, instala-se no cabeçalho, nas margens… sendo um elemento decorativo de luta pela liberdade de expressão.
As instituições, os políticos decadentes de um rotativismo gasto e estagnado eram zurzidos pela crítica, mas num momento destes de guerrilha, o alvo tinha que ser mais personalizado, e para além dos governantes, o Rei perdeu o estatuto de Nação, para ser simplesmente um gordo esbanjador da riqueza do país, passou a ser um alvo directo da sátira panfletária. O Juiz Veiga não admitia tais insolências, proibindo, a certo momento, o acto de se caricaturar a família real. Nada melhor que uma interdição para aguçar o engenho e em consequência desta restrição nasceram algumas das melhoras caricaturas de Leal da Câmara. Como diria mais tarde Oliveira Salazar, «os verdadeiros pensadores, os que pensam, transpõem, sem ninguém dar por isso /…/ todas as limitações». Foi o que aconteceu – o chapéu à Mazantini, e uma série de objectos, como um barril… passaram a simbolizar o Sr. Proibido.
Apesar de toda a censura, apreensões, multas… “O Supl. Humorístico de A Marselheza”, passou a chamar-se simplesmente “Marselheza” o qual foi sobrevivendo até ao numero 57, morrendo por exaustão e por desinteresse do público já que, entretanto, em Maio de 1898, Leal da Câmara abandonou esta redacção fundando o seu próprio semanário, em parceria com o jornalista Gomes Leal. A batalha prossegue agora, não sob a bandeira do hino francês da liberdade, mas atacando directamente toda “A Corja” que governava o país, desde o Rei ao dirigentes partidários monárquicos, ministros… A primeira capa de A Corja era precisamente a caricatura do Rei feita com o retratos dos políticos que faziam a sua corte. Prossegue assim a sua batalha, com muita poesia revolucionária, lutando por ideais que raramente eram, totalmente, partilhados pelo grande público, antes por um pequeno grupo de idealistas.
A 16 de Dezembro de 1898 o nº17 é apreendido, acto que Câmara já pressentia, por isso tinha já um Suplemento preparado e lançado de imediato para denunciar mais este acto anti liberdade de expressão. Este acto foi a gota de água que os fuinhas esperavam para o caçarem e entregar ao Juiz Veiga. Uma nova Lei facilitava a prisão com julgamento sumário e o envio para a deportação. Felizmente que os republicanos tinham um sistema de defesa montado para se informarem dos acontecimentos antes deles se concretizarem, e assim tiveram tempo de o despachar para fora do país. Assim surge o primeiro exilado da caricatura em Portugal em finais do ano de 1898. Parte para um exílio de 11 anos.

Com a ajuda de cúmplices republicanos, foge para Madrid em Dezembro de 1898. No âmbito pessoal esta fuga para o exílio foi um desastre, mas no aspecto artístico foi uma sorte porque foi obrigado a visitar novos mundos, conhecer outros ambientes, beber de outras fontes estéticas levando-o para uma outra maturidade plástica, que nunca conheceria em terras lusas.


Partiu como exilado político de um movimento ideológico que lhe prometeu apoios em caso de imprevistos policiais, mas que depois só lhe deu apoio na compra do bilhete e na chegada a Madrid, entregando-o depois ao seu destino. Teve que se fazer à vida, lutar pela sobrevivência com as poucas armas que possuía – o desenho.
Como escreverá um dos seus biógrafos, Aquilino Ribeiro, ele foi logo instruído sobre o ambiente espanhol «que não professavam nenhuma simpatia séria pelos portugueses e consideravam Portugal o país da anedota».
«Madrid, de princípio, estarreceu-o – prossegue Aquilino Ribeiro – com as suas grandes artérias e palácios construídos para a prosápia castelhana. Faltava-lhe o ar comum, catitinha e piegas, que dá visco e compadrio às coisas de Lisboa, e essa falta bulia-lhe na alma. Mas que animação! Que ror de mulheres bonitas, estimulantes que nem malaguetas, alegres e vistosas como rosas no roseiral…»
Portugal, na Europa de então, era um atraso de sociedade e Madrid, apesar de na fachada parecer mais opulenta, acabava por ser muito menos pródiga, muito menos progressista do que se imaginava. No âmbito da caricatura, Portugal tinha um historial mais rico no domínio da qualidade de filosofia humorística e de artistas graficamente mais evoluídos. Por seu lado, Madrid possuía uma riqueza pictórica que nada se assemelhava com a pobreza do nosso país, a começar pela colecção d’ O Prado, acabando no movimento de jovens irreverentes que por lá andavam como Picasso, Sancha…
 Tomás Júlio aproveitou para beber, para devorar Goya, Velásquez, El Greco… já que pouco dinheiro tinha para devorar outras coisas. Inscreveu-se na Escola de Belas Artes onde frequentou algumas classes de Moreno Carbonero (artista natural daqui perto – Málaga), assim como frequentou outras Academias, onde predominaram as Academias dos Bares e Cafés onde havia tertúlias de artistas, onde podia executar livremente a sua arte. As tertúlias intelectuais foram o seu refúgio anti-depressivo e os cadernos de apontamentos a sua escola. Copia os grandes mestres, estuda as pinceladas, as cores, as perspectivas, o enquadramento… e nessa amálgama de conhecimentos ligados à sua irreverência caricatural cria um estilo, uma forma de estar que deslumbra Madrid.


O que ele mostra aos seus companheiros de tertúlias fascina-os, descobrindo uma segunda encarnação de Goya e todos querem ser retratados, caricaturados para a posteridade pelo pincel do jovem português. Os mestres da cultura madrilena como Benavente, Manuel del Palácios, Perêda, Sorolla, Benliure, , Compary, Manuel Rodriguez, Moreno Carbonero… todos personalidades de tão grande renome, como de bolsas vazias. «Aqui todos me tem tratado com muito carinho e pena é que não seja o país próspero e rico, onde se ganha muito dinheiro. Infelizmente não o é. /…/ O êxito dos meus pasteis foi estrondoso no meio intelectual, só há um contra: ter de trabalhar de graça. Esta classe de gente, literatos, periodistas, actores dramáticos, poetas e quejandos pagam com artigos, encómios, mas lá esportular-se em metal sonante não se fala, por muitas e várias razões, das quais a principal é esta, que andam sempre a tinir.»

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