Monday, February 23, 2009

O Carnaval por Luís d'Oliveira Guimarães (ilustração de Raphael Bordallo Pinheiro)

Carnaval - Sempre que chega o Carnaval me recordo da pitoresca figura do Chéché que, com a sua casaca de seda e o seu sapato de fivela, o seu bicorne e o seu chavelho, havia de atravessar um século, não apenas com uma máscara de entrudo, mas como uma sátira política, e que um belo dia desapareceu das ruas da cidade para se recolher - pobre sombra esmaecida - não sei se a um museu, se a um asilo. Lembro-me neste momento, duma velha crónica que li, há anos, em que se descrevia o ultimo Chéché como um farrapo de homem envolto num farrapo de lustrina, e se notava, lugubremente, que a graciosa folia do entrudo de Roma sob o pontificado paternal de Gangoneli, a mascarada aristocrata do Carnaval de Veneza, toda a teoria galante dos «cocumetti», todos os folguedos de Pantalone, todos os requebros de Colombina, tivessem vindo expirar naquela caricatura sórdida, quase torpe, que cheirava a vinho e pedia esmola. Por esse tempo havia ainda á sua volta, um ou outro que ria, que abria a boca de espanto, que fugia assustado do seu facalhão imenso? Não importa. O Chéché, como instituição, estava em decadência. O que sé via nas ruas, com um sujo rabícho de estopa e um nariz de papelão desbotado, era, quando muito a sombra do que ele fora! E, entretanto, essa figura de Carnaval representava - nunca é demais insistir neste ponto - não apenas uma máscara de entrudo, mas uma sátira política. Desempenhara um vasto papel. Dentro da sua expressão carnavalesca constituirá uma arma - e porventura a mais séria de todas as armas que é a do riso. Uma das melhores biografias que conheço do Chéché escreveu-o, com digna imparcialidade, Carlos Malheiro Dias. Nessa página admirável o Chéché surge o que ele estruturalmente pretendera realizar e que, de facto, realizara: a síntese ridícula, comicamente vingativa, do tempo do intendente, da inquisição e da forca. O Chéché, com a sua cabeleira de estopa, a sua luneta doirada, a sua casaca de seda, alvoroçando a velha Lisboa de capote e lenço, ora a pregar sermões jacobinos, ora a dar vivas à Constituição, tornara-se, na verdade, o mais implacável inimigo das instituições ultramontanas. Todos os anos durante os dias de Entrudo o Chéché, de luneta à Pina Manique·é de rabicho à D. João VI, demolia, com a sua faca de pau e as suas facécias grosseiras, o último prestígio da nobreza realista. Era ignominioso e terrível. Com o dobrar dos tempos, depois de sublevações e revoltas sangrentas, o liberalismo foi-se definitivamente enraizando e pacificando, com a sua corte irrequieta de marechais e de duques, até perder a feição revolucionária. Mas o Chéché, agarrado ao seu bastão de bobo, erecto nos seus sapatos de fivela, continuou a sua função crítica, como inimigo intransigente da tirania, ridicularizando os déspotas, verberando, nas bochechas da polícia, os excessos dos ministros e estruculências dos ditadores. Malheiro Dias tem razão. Durante um século essa caricatura foi o distintivo e a originalidade do entrudo lisboeta - o seu sucesso, a sua glória, o seu simbolo. Com o esguicho da seringa, o graniso do tremoço, a metralha do ovo de cheiro (para que nunca se descobriu máscara possível) o Chéché foi, de facto, o indiscreto senhor do Entrudo português. O seu bicórnio às três pancadas não temia o calabouço do governo civil. Não consta que uma vez sequer a sua luneta doirada tivesse relanceado um edital da polícia. Mas tudo passa - e o Chéché passou. A Lisboa solene, de saia de cauda, deixou de o tomar a sério. Já não era uma necessidade: era uma excrescência. Ele que ajudara a implantar o liberalismo; ele que fora, dentro da sua camisa de bofes e da sua casaca de Incroyable, uma das grandes forças do novo regime - viu-se postergado a um plano secundário. Alguns correligionários fiéis pretenderam ainda, caridosamente, instalá-lo num lugar de amanuense. Recusou. Antes morrer de fome. Era o seu último orgulho. A verdade é que um belo dia desapareceu das ruas. Não sei, repito, se ele teria recolhido a um museu, se a um asilo. Mas quantos não hão de perguntar se essa velha caricatura, agora votada ao esquecimento, não merecerá, além do nosso respeito por aquilo que foi, um pouco da nossa atenção por aquilo (tanto a História se repete) que ainda poderá vir a ser?
(Fim de Semana 15/3/1948)

Elegia do Entrudo

Já Entrudo não sou! À' lama escura
Meu estro foi parar desfeito em vento…
Eu o mundo ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a sepultura!

Conheço agora quão triste figura
De mil maneiras fiz - que louco intento! -
Masc’ra!... Tivera algum merecimento
Se a linha da razão seguisse pura!

Eu me arrependo: a língua quase fria
Brade em alto pregão sobre a cidade
Que atrás de mím fantástica corria:

Já não sou quem fui... Nem sei que quero...•
Rapazes do meu tempo! O' mocidade!
Vou para o Outro-Mundo - e lá os espero…

Pela deturpação.
L.O.G. (9/2/1948)

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